quinta-feira, 4 de junho de 2020

Conhecemos todos os cantos dos anfíbios anuros do Brasil?

Dr. Vinicius Guerra

PPG em Ecologia e Manejo de Recursos Naturais, UFAC

Instituto Boitatá

Contato: vinicius.guerrabatista@gmail.com




Assim como nós e a maioria das aves, muitas espécies de anfíbios anuros utilizam sinais sonoros para se comunicar. Os anuros são conhecidos, popularmente, como sapos, rãs e pererecas e neste grupo de animais os cantos (vocalizações) são mais frequentemente emitidos por machos. Existem vários tipos de cantos, mas o mais comum é o canto de anúncio, que serve para o macho anunciar sua presença para as fêmeas, bem como para defender um território. É pelos cantos que as fêmeas conseguem selecionar os melhores parceiros para a reprodução. Isso ocorre porque o canto reflete as características dos indivíduos, ou seja, aqueles que cantam mais e possuem cantos mais graves provavelmente possuem melhores condições físicas e metabólicas, e, portanto, devem produzir melhores descendentes. Além disso, os cantos são importantes pois podem ser usados em estudos de comportamento, ecologia, evolução, conservação e taxonomia. Uma vez que o canto das espécies de anuros é determinado geneticamente, cada espécie possui um tipo de canto único, que a diferencia das demais. Consequentemente, é muito importante que os cientistas conheçam o canto de todas as espécies.

O Brasil é o país com a maior riqueza de espécies de anfíbios anuros do mundo. Atualmente são conhecidas 1093 espécies, mas muitas outras são continuamente descritas todos os anos. Embora os cientistas estejam trabalhando para descrever novas espécies, ainda existe pouco conhecimento sobre aquelas já descritas. Neste sentido, nós conduzimos um estudo de revisão do conhecimento sobre os cantos das espécies de anuros que ocorrem no Brasil. O artigo científico foi intitulado “Os cantos de anúncio dos anuros brasileiros: revisão histórica, conhecimento atual e direções futuras” (Guerra et al. 2018) e foi publicado em 2018, na revista científica Plos One (Link: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0191691). Os principais objetivos do estudo foram: (1) descobrir o número e a porcentagem de espécies de anuros do Brasil com cantos descritos em relação as suas famílias, biomas e categorias de ameaça; (2) avaliar se existe uma tendência de aumento no número de pesquisadores envolvidos em estudos de descrição dos cantos ao longo do tempo; e (3) verificar se a quantidade e qualidade de informações fornecidas nos estudos está aumentando com o passar dos anos. A qualidade foi medida em termos de quantidade de informações sobre os cantos que eram fornecidas nos trabalhos de descrição. Outras informações, como por exemplo, se os cantos das espécies estão depositados em alguma coleção de sons pelo mundo, também foram avaliadas.

Assim como nós esperávamos, observamos um aumento exponencial no número de descrições de cantos, e até o momento sabemos que existem 719 (68,8%) espécies de anuros do Brasil com seus cantos conhecidos, sendo estes cantos descritos em 607 diferentes estudos publicados através de artigos e livros. Algumas dessas espécies possuem seus cantos descritos mais de uma vez (diferentes estudos) e como resultado existe um total de 1403 descrições publicadas entre os anos de 1960 (primeira descrição) e 2016. As espécies que possuem o canto descrito muitas vezes e por diferentes pesquisadores, tais como a pererequinha-do-brejo (Dendropsophus minutus; 15 descrições) e a rã-manteiga (Leptodactylus fuscus; 14 descrições), geralmente ocorrem em vários biomas do Brasil (figura abaixo), ou seja, possuem uma ampla distribuição. Logo, essas espécies podem ser encontradas facilmente pelos pesquisadores e por isso são mais estudadas. Espécies com seus cantos desconhecidos, geralmente, são encontradas em locais de difícil acesso, são pouco conhecidas em termos de distribuição geográfica ou biologia geral, têm hábitos enigmáticos, habitam o chão da floresta ou vivem perto de riachos (hábito reofílico).

Figura 1. A esquerda uma pererequinha-do-brejo (Dendropsophus minutus) e a direita uma rã-manteiga (Leptodactylus fuscus). Ambas espécies são amplamente distribuídas no Brasil e ocorrem em todos os biomas.


Verificamos que o número de autores por estudo também aumentou significativamente ao longo dos anos (figura abaixo) e dos 607 estudos sobre descrições de cantos de anuros do Brasil, 88 foram de um único autor (14,5%), 199 publicadas por dois autores (32,8%), 168 por três autores (27,7%) e o restante por quatro ou mais autores (25,0%).

As famílias de anuros com mais cantos descritos são aquelas que também possuem maior número de espécies, sendo elas Hylidae (75,3%) e Leptodactylidae (88%). Por outro lado, algumas famílias como Brachycephalidae e Bufonidae, possuem menos da metade de suas espécies com os cantos descritos (figura abaixo). Assim, famílias de anuros que possuem espécies que foram descritas mais recentemente ou que possuem distribuições mais restritas têm sido menos estudadas, com especial atenção aquelas que são endêmicas do Brasil e que estão em algum grau de ameaça.


Considerando a lista vermelha de anfíbios anuros em risco de extinção, somente 56,8% das espécies que estão em categorias de ameaça (criticamente ameaçadas - CR, ameaçadas - EN e vulneráveis - VU) têm seus cantos descritos, enquanto 82,1% das espécies não ameaçadas possuem os cantos descritos (figura abaixo). As espécies classificadas como ameaçadas são priorizadas nos planos de ação de conservação e, de acordo com nossa revisão, também devem ser priorizadas nos esforços para descrever cantos de anuros e conduzir estudos de bioacústica. Além disso, espécies classificadas como deficientes de dados (DD) apresentam pouquíssimas informações sobre sua história natural. Uma vez que os anfíbios são o grupo de vertebrados terrestres com a maior quantidade de espécies DD, essas espécies precisam de uma atenção especial, especialmente as que foram descritas há mais de 50 anos e que possuem uma pequena área de ocorrência.

Em relação a qualidade das informações, os estudos variam muito na quantidade de dados apresentados. Notamos que houve um aumento no número de informações fornecidas nos estudos sobre cantos ao longo do tempo, embora dados importantes como temperatura e umidade no momento da gravação, ou mesmo parâmetros acústicos importantes para futuros estudos de taxonomia, ainda não são incluídos nos trabalhos. Um dos mais sérios problemas em relação as descrições dos cantos é a ausência de padronização dos procedimentos metodológicos dos estudos, o que muitas vezes pode dificultar as comparações das características dos cantos. Informações detalhadas sobre todas as condições de gravação, como localidade precisa, data, hora da gravação, condições climáticas e a descrição dos equipamentos de gravação, além das configurações de gravação e dos procedimentos de análise, são importantes para comparações entre estudos e espécies. O período de atividade (dia/noite) e o sítio de canto também podem ser características importantes para orientar futuras pesquisas.


No geral, os biomas com grande diversidade de anuros apresentaram uma menor porcentagem de espécies com seus cantos descritos, sendo: Mata Atlântica (65,1%), Amazônia (71,5%), Cerrado (83,5%), Caatinga (87,2%), Pampa (83,9 %) e Pantanal (90,6%). Se considerarmos somente as espécies endêmicas (que são encontradas exclusivamente em um bioma), o maior percentual de espécies com cantos descritos correspondeu ao Cerrado (77,1%), seguido pela Amazônia (68,7%) e Mata Atlântica (54,9%). Por outro lado, a proporção de espécies com cantos descritos mais de uma vez (mais de um estudo) varia de mais de 50% no Pantanal a 13,4% na Mata Atlântica. Os biomas Caatinga, Cerrado, Pampa e Pantanal possuem menor diversidade e taxa de endemismo em comparação com os biomas de florestas úmidas, como a Amazônia e a Mata Atlântica. Além disso, biomas com florestas úmidas possuem um acesso mais difícil a novas áreas de amostragem.

Apenas 547 espécies de anuros brasileiros (52,3% de todas as espécies; 76,1% das espécies com cantos descritos) têm algum canto depositado em coleções de sons de animais. Assim como espécimes e amostras genéticas, os arquivos sonoros são importantes repositórios da biodiversidade mundial, armazenando informações significativas sobre as espécies. Devido à relevância da bioacústica na delimitação de espécies de anuros, o depósito de cantos gravados em bibliotecas de sons pode facilitar os estudos taxonômicos. Portanto, depositar os arquivos sonoros em coleções acessíveis aos pesquisadores deve se tornar uma prática comum para auxiliar investigações posteriores.

Como conclusão do estudo, podemos observar que ainda existe uma grande lacuna de conhecimento dos cantos dos anuros do Brasil, o que pode limitar a realização de estudos mais abrangentes, tais como as relações evolutivas entre grupos de espécies ou até mesmo dificultar a identificação de espécies crípticas (duas ou mais espécies são morfologicamente semelhantes, porém podem ser diferenciadas por caracteres genéticos, ecológicos e/ou comportamentais). Por outro lado, existe um grande aumento no número de estudos e de pesquisadores interessados em descrever os cantos das espécies de anfíbios durante as últimas seis décadas. O surgimento de gravadores portáteis e digitais a um preço mais acessível, bem como de programas computacionais para as análises dos cantos, têm facilitado o desenvolvimento das pesquisas e o avanço dos estudos de comunicação acústica dos animais. Os esforços para conhecer e proteger a biodiversidade dependem de uma grande série de fatores, como investimento em pesquisa, estabelecimento de redes de pesquisa, preservação de habitats naturais, ou mesmo do conhecimento da história natural das espécies, como por exemplo conhecermos os cantos de todos os anfíbios anuros.


Referência

Guerra V, Llusia D, Gambale PG, Morais ARd, MaÂrquez R, Bastos RP (2018) The advertisement calls of Brazilian anurans: Historical review, current knowledge, and future directions. PLoS ONE 13(1): e0191691. https://doi.org/ 10.1371/journal.pone.0191691














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