segunda-feira, 4 de maio de 2020

Por que estudar sapos, rãs e pererecas?


Creio que a maioria dos pesquisadores que estudam os anfíbios, já tiveram que responder a uma destas perguntas (ou a todas): Por que estuda sapo? Qual importância de se estudar sapo? Vai criar rã? Para acontecer a pergunta, é necessário que a pessoa vença a sua aversão aos anfíbios. Na maioria das vezes, quando você diz sobre o que estuda, as pessoas fazem cara de nojo. A cara de reprovação aparece quando diz que: “Nossa! O governo ainda te paga para fazer este tipo de pesquisa”.

Estudar anfíbios é algo estranho, mesmo para familiares entenderem. Minha finada mãe, creio eu, não entendia o que eu fazia. Por outro lado, ficou muito feliz quando dei para ela uma cópia do meu mestrado e outra do meu doutorado. Sentia muito orgulho! Podia não entender, mas achava importante.

Entre 1991 e 1993, realizei uma pesquisa, sob orientação do Dr. Célio Haddad, sobre a reprodução e vocalização de uma perereca, Dendropsophus elegans. Era o meu mestrado, que foi realizado no Parque Estadual da Serra do Mar, Núcleo Picinguaba (estado de São Paulo). Saía de Rio Claro (SP), por volta das 5h e chegava no parque, por volta das 17h. Tudo de ônibus.

Nesta espécie, machos são menores que as fêmeas. A atividade reprodutiva ocorreu por diversos meses (veja gráfico abaixo). As setas no gráfico indicam que a poça estava seca. Os machos vocalizavam na vegetação do interior ou do entorno do brejo.




O horário de maior atividade dos machos foi entre 3-4 horas após o pôr-do-sol (veja gráfico abaixo). As fêmeas (veja foto abaixo) chegavam após os machos. E, então, iniciavam o processo de escolha dos machos.
 
 
Após a fêmea escolher o macho, havia a formação do amplexo (abraço nupcial). Ao longo do estudo, dos 330 machos marcados: 273 não conseguiram nenhum amplexo, 53 amplectaram uma vez e somente três foram encontrados em amplexo por duas vezes (veja gráfico abaixo). 
 

Os machos em amplexo eram maiores que os machos que não conseguiram amplexos. Além disso, os machos em amplexo eram, em média 80% do tamanho da fêmea. Nesta razão (0,80), encontramos a maior taxa de fertilização de ovos: quando o macho era muito menor que a fêmea (razão menor que 0,70) ou quando eram muito maiores (razões acima de 0,85) a percentagem de fertilização diminuía, chegando a ser zero quando o macho tinha 90% do tamanho da fêmea. A desova era depositada diretamente na água (veja foto abaixo). Poucas espécies têm um padrão parecido com este.



Ufa, fazer esta pesquisa foi muito trabalhoso. Foi um típico trabalho de história natural, durante o qual ia para o brejo por vota das 16-17h e só retornava às 3h da madrugada. Mas, agora, a quem interessa esta pesquisa? Pererecas que vocalizam por muito meses, fêmeas que escolhem machos?

Conhecer aspectos da história natural de qualquer espécie é importante para se propor ações de conservação. É necessário saber quando a espécie está ativa, qual tamanho da sua ninhada, do que se alimenta, como ocorre a formação do casal. Sem estas informações, não é possível preservar uma espécie. Os anfíbios são o grupo de vertebrados mais ameaçados, com muitas espécies apresentando declínios populacionais ou mesmo se extinguindo.


E se várias espécies de anfíbios se extinguirem, poderá haver um desequilíbrio ambiental, pois são importantes controladores de artrópodes (incluindo insetos vetores de doenças), cujas populações riam crescer exponencialmente. Anfíbios participam do fluxo de energia nos ecossistemas. Além disso, como muitas espécies de anfíbios possuem venenos, que estão sendo estudados devido ao potencial de se produzir medicamentos. E, não podemos esquecer os serviços culturais que os anfíbios desempenham. Enfim, esta pesquisa que realizei é uma típica pesquisa básica, sem objetivos aplicados, sem interesse em desenvolver um medicamento. Pesquisas básicas são importantes porque geram questões que podem ser exploradas em pesquisas posteriores.


E, não é que em 2020, o Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTI) publicou a portaria 1.122 de 19/03/2020 que define áreas prioritárias para desenvolvimento de pesquisas (que receberão recursos). Todas as áreas têm um viés tecnológico. E como ficam pesquisas básicas. Apesar do ministro, Marcos Pontes, ter divulgado um vídeo (https://www.youtube.com/watch?v=PFIL-vX5q8I) informando que a pesquisa básica está contemplada pela portaria, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq; órgão vinculado ao MCTI) divulgou edital de bolsas de iniciação científica que exclui as pesquisas básicas e humanidades (http://www.cnpq.br/web/guest/noticiasviews/-/journal_content/56_INSTANCE_a6MO/10157/8920772). 


Já devíamos ter superado a dicotomia ciência básica x ciência aplicada. O que existe de fato, é aplicação da CIÊNCIA. Ciência Básica gera conhecimento, gera novas teorias. É pura curiosidade, mas que serve de alicerce para novas descobertas ou aplicações. Quem poderia imaginar que do veneno de uma jararaca seria descoberto o princípio ativo para combater a hipertensão arterial: o captropil. Vejam, que foi necessário descrever a espécie de serpente, compreender sua história natural, do que se alimenta, como se reproduz, para que fosse mantida em cativeiro para que pesquisadores pudessem extrair seu veneno e descobrir o medicamento. Sem ciência básica não haveria ciência aplicada. Há uma clara complementação.


Sem os filósofos não haveria método científico. Sem historiadores, não saberíamos o que ocorreu nos porões das ditaduras sul-americanas. Sem matemáticos e físicos, não teríamos viajado para a Lua. Com avanço da inteligência artificial, muitas empresas estão contratando filósofos para “ensinar” ética aos programas e máquinas (https://insider.dn.pt/featured/facebook-contrata-filosofos-para-ajudar-os-algoritmos-o-que-e-isso-significa/22266/).


Então, devemos protestar, resistir e impedir que seja dado mais um passo para o desmonte do sistema de Ciência e Pesquisa brasileiro. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e Academia Brasileira de Ciências (ABC) já questionaram o MCTI (http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/sbpc-e-abc-cobram-definicao-de-programas-prioritarios-para-apoio-a-pesquisa-basica/). No dia 7 de maio, teremos a Marcha Virtual pela Ciência. Participe: http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/marcha-virtual-pela-ciencia-utilizara-avatares-para-representar-participacao-dos-manifestantes/



Texto: Rogério Pereira Bastos

Laboratório de Herpetologia e Comportamento Animal

Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás

Contato: rogerioiscinax@gmail.com



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